3/17/2010

Burocracia x Brasil, quem ganha ?

Uma criatura complexa está prestes a nascer. O nome do bicho é RIISPOA e significa "Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal". Idealizado pela burocracia do Ministério da Agricultura como instrumento para a garantia da qualidade e seguranca alimentar dos produtos de origem animal (mel, laticínios, carnes, peixes, etc) produzidos no Brasil, o dito cujo do RIISPOA, em sua revisão ora em trânsito pela Casa Civil, inclui uma ameaça grave a um setor que emprega milhares de pessoas no País todo e que exportou em 2009 um montante equivalente a 66 milhões de dólares. Trata-se do setor apícola que engloba desde os apicultores (em geral pequenos produtores espalhados por todos os Estados), cooperativas, entrepostos, exportadores, atacadistas e agentes de comércio (entre os quais me incluo).

Para entender melhor o problema, precisamos voltar ao ano de 2003. Nesse ano a FVO - Food and Veterinary Office (órgão equivalente ao MAPA na União Européia) enviou uma delegação de inspetores ao Brasil, a fim de averiguar de que tipos de controles o Governo Brasileiro dispunha para garantir que os produtos de origem animal produzidos no País (e eventualmente exportados) estavam isentos de contaminantes (resíduos indesejáveis tais como antibióticos e agrotóxicos por exemplo). Dessa inspeção resultou um ofício que alertava as autoridades brasileiras sobre a desconformidade do sistema brasileiro em relação às exigências sanitárias européias, mormente no que se referia ao controle de resíduos. Nesse mesmo ofício havia uma lista de medidas e práticas que o Governo deveria observar para garantir a continuidade do acesso dos produtos de origem animal (entre eles o mel de abelhas) ao mercado europeu. Por razões que até hoje desconheço, nossos burocratas e autoridades pouca atenção deram ao tal ofício e, no setor apícola, esse problema jamais foi discutido ou considerado. Os europeus são metódicos e como não confiam em boas intenções, enviaram uma nova comitiva de inspetores em 2005 que obviamente encontrou o setor apícola na mesma condição de 2003, ou seja, sem qualquer monitoramento estruturado para presença dos resíduos indesejados nos produtos da cadeia. Pouco tempo depois, em Março de 2006, a União Européia baniu todos os produtos apícolas brasileiros de seu mercado. Ou seja, estávamos, a partir daquele momento, impedidos de vender mel ou qualquer produto apícola na União Européia.
O mais interessante dessa história é que o Brasil é, por motivos biológicos e geográficos, um dos poucos países do mundo quase que totalmente livres de riscos de contaminação por resíduos. As abelhas brazucas são, por um acidente, híbridas, africanizadas. Essa mistura resultou numa maior resistência das colméias à doenças e por isso os apicultores brasileiros não fazem uso de antibióticos e fungicidas. Alguns apricultores nem sabem que existe remédio para abelhas. Ao mesmo tempo, se qualquer um de nós visitasse um apicultor argentino, uruguaio, americano, turco ou ucraniano, um dos orgulhos deles seria mostrar uma geladeira cheia de medicamentos, sinal de que eles prezam a saúde de suas colônias de abelhas. E se um acidente histórico ajudou o Brasil a ficar livre desses remédios, Deus também deu uma mãozinha e nos agraciou com um imenso território com plantas de enorme potencial apícola. E mais : muitas das regiões apícolas são bem afastadas de qualquer centro urbano ou de zonas de agricultura intensiva. Assim, prova de que Deus é mesmo brasileiro, boa parte do mel brasileiro é NATURALMENTE ORGÂNICO !!
Mesmo assim, fomos banidos do mercado europeu como contei acima. O embargo ao mel brasileiro funcionou como um despertador para os burocratas. Imediatamente grupos de trabalho foram formados e ações foram lançadas para a implementação do hoje famoso "Plano Nacional de Controle de Resíduos". Tudo foi feito com enorme esforço e colaboração do setor privado, que durante os dois anos de embargo acumulou prejuízos comerciais significativos.
Como sempre depois da tempestade vem a bonança, em Março de 2008 o embargo caiu. Estávamos de volta de onde nunca devíamos ter saído. Não fiquei surpreso ao saber que alguns burocratas até ficaram orgulhosos por isso. Afinal, quanta competência !
Uma das condições que tivemos que observar para ter nosso produto aprovado para o mercado europeu foi a seguinte : todo entreposto ou unidade processadora de mel que consolida vários lotes para a formação de um lote a ser exportado para a União Européia tem que operar em consonância com alguns princípios sanitários determinados que incluem os conceitos de rastreabilidade, higiene e segurança alimentar. Assim, as empresas exportadoras de mel (que na maioria são entrepostos) compram a matéria prima de centenas de apicultores e cooperativas e a beneficiam utilizando sistemas de qualidade que respeitam esses princípios.
O embargo de 2006 deitou raízes na burocracia do Mapa. A preocupação com a qualidade do mel que produzimos alcançou, nesse âmbito, proporções que nem o mais meticuloso dos alemães conseguiria imaginar. Desde de 2008, além dos entrepostos terem que estar em conformidade com as regras sanitárias acima descritas, o MAPA resolveu que para todos os embarques destinados à União Européia, o mel deveria provir de casas de mel inspecionadas e aprovadas pelo SIF - Serviço de Inspeção Federal. Casas de mel são pequenos estabelecimentos (muitas vezes apenas um galpão coberto) aonde os apicultores fazem a extração primária do mel, retirando o mesmo dos favos através de centrífugas e envasando-o em tambores que depois serão vendidos aos entrepostos. O problema é que o número de casas de mel existentes no Brasil, que atendem a milhares e milhares de pequenos produtores, é inversamente proporcional ao número de fiscais do SIF disponíveis para visitá-las, inspecioná-las e aprová-las (ou não). Eu fiz uma conta que a grosso modo resultou que o Governo levaria mais de cem anos para inspecionar somente as principais casas de mel existentes no Brasil haja vista o número de fiscais disponíveis para esse segmento. Disso resultou o que chamamos no mercado de "auto-embargo". Ou seja, indo muito além do que nossos clientes pediram (os europeus), decidimos exigir coisas que eles nem sonham pois sabem que é inviável. Para deixar uma casa de mel de acordo com o padrão SIF é necessário um investimento que na maioria das vezes não é factível para o pequeno produtor, mesmo que em regime associativo. Por causa desse auto-embargo, mais uma vez o setor privado está amargando prejuízos pois deixamos de vender para a Europa (que paga preços maiores) para ter que vender para os EUA, o que tem representado perdas de até 20% na rentabilidade das operações. Deixamos de vender para a Europa porque há pouquíssimas casas de mel que já tiveram a sorte de receber a visita dos fiscais do SIF e serem aprovadas.
Como se isso não bastasse, o MAPA em seu trabalho de revisão do RIISPOA, recusou os argumentos do setor privado quanto à desnecessidade da exigência de enquadramento das casas de méis no padrão SIF e foi além : segundo a nova versão deste regulamento, esta exigência passará a valer para todos os países para os quais o Brasil exporta. A criatividade governamental é realmente estupenda. Estamos prestes a ampliar o auto-embargo para todos os países. Eu gostaria de saber o que o MAPA sugere que façamos com a nossa produção de mel... Quem sabe o Governo poderia comprar toda a produção e criar uma Bolsa Colméia ou um programa novo chamado Vida Doce ou coisa parecida.

Se o novo RIISPOA for ratificado pelo Presidente Lula, estaremos perto do fim do mercado formal de mel no Brasil. Ou será que o Governo vai disponibilizar 10 mil fiscais para trabalhar em todo o Brasil na qualificação das casas de mel ? ISSO É UM ABSURDO.

O MAPA está sendo mais realista que o rei. O problema é que o rei ainda não sabe.

8 Comments:

At 3:31 PM, Anonymous Marcelo said...

De acordo com o seu argumento, para exportar a qualidade tem que ser ótima mas para o consumo interno pode ser qualquer porcaria? Estou de acordo com o governo em exigir o selo do SIF.

Isso é que nem selo "tipo exportação" que você vê em algumas embalagens de café. Ué, por que o exportado é melhor do que o pra consumo interno?

Outra coisa: o governo não precisa fiscalizar cada casa de mel. Basta definir as exigências básicas e fiscalizar de maneira aleatória. Quem for pego fora das especificações paga multa ou é impedido de exportar, algo assim.

O selo do SIF não garante qualidade eterna. Uma casa de mel fiscalizada hoje pode deixar de seguir as regras amanhã, já que garantiu o selo.

 
At 4:14 PM, Anonymous Anonymous said...

Caro Marcelo, não sei se conhece o setor, mas isso vai inviabilizar todo um mercado, praticamente todo agricultor familiar que o governo Lula incentivou a comprar colméias e nao incentivou a fazer casas de meis com relacioamento no MAPA. Dizer que apoia da boca pra fora é facil, agora imagine aí, vc milhares de casas de meis sendo feitas do zero, ou uma parte delas sendo adaptadas?? cerca de R$ 30-50 mil para cada uma... quem paga esta conta?

 
At 4:41 PM, Anonymous Marcelo said...

Concordo que é isso vai inviabilizar o negócio de muita gente, mas também é complicado a sociedade consumir um produto sem qualidade. E se fosse com a carne? O sujeito mata a vaca no quintal e vende a carne na calçada. Você não vê isso acontecendo. Por que para o mel seria diferente?

O que o governo poderia fazer é oferecer financiamento pra essa gente se adaptar e dar um prazo também. Por exemplo, daqui a 5 anos, só que for certificado vai ser permitido (como diz o ditado, o combinado não é caro). O que não dá é fechar os olhos pra qualidade só pra fazer caridade.

 
At 5:12 PM, Anonymous Anonymous said...

???

 
At 6:24 PM, Anonymous John Laurino said...

Marcelo, eu naosou contra a fiscalizacao. eu sou contra o governo estabelecer uma regra inviavel. Nao ha fiscais para atender a demanda por inspecoes. Esse eh o problema. Seria a mesma coisa se o governo impusesse uma fiscalizacao veicular para que vc tivesse o direito de trafegar mas que a inspecao demorasse cem anos para acontecer. Exageros a parte, esse eh +- o caso.

 
At 10:16 AM, Anonymous Thiago said...

Na verdadde Marcelo, o setor é muito organizado, há alguns anos se trabalhou a mudança do maquinário de chapa para inox, ha á alguns anos vem sendo feito cursos de capacitações, e vejo como exportador um mercado muito, mas muito promissor quando se entende que o que ele trabalha é alimento. Organização e sanidade é tudo para este setor, mas o problema é que centenas ou até milhares de casas de méis com excelente condições de trabalho e sanidade, vão parar de fucnionar por que o MAPA vai exigir paredes aqui e acolá e outras mais exigencias que o apicultor nao tem dinheiro para pagar e com isso vai ficar parada a casa de mel.Sem contar que os funcionários do MAPA no setor da fiscalização são poucos, e digo ja de antemão que os de meu setor fazem muito mas muito mais do que estão dentro de seu alcance, são profissionais dedicados e extremamente envolvidos com o compromisso de dar qualidade ao setor, porem não serão suficientes nem para 10% do trabalho que vai existir se continuar com a aprovação deste novo requisito.
As empresas, como a nossa tem investido em casas de meis proprias, com planos de sanidade, segurança alimentar e tudo mais que se exige dentro dos padrões SIF para que tenha o mercado, mas eu mesmo conheço plantas de processamento primário no Brasil, casas de meis na europa, que nao tem nada disso e são aprovadas sem problemas....
Conheço a extração de mel na europa aonde é feita em um maquinário que se coloca a melgueira toda dentro da maquina e o mel é aceito no mercado europeu todo.
Esse processo o MAPA Brasileiro nao quer aceitar de jeito nenhum, exige uma separaçao fisica das melgueiras dos favos.... Isso o apicultor nao entende, um custo gigante.... Enfim são muitos e muitos os critérios que são discutidos.
A fiscalização inibe o setor de causar problemas à população (até mundial deve se dizer) porém não é isso que estamos batalhando contra e sim para podermos sentar e chegar a um acordo, aonde que milhares de casas de meis que tem condições excepcionais de trabalho vão perder a validade e o setor vai perder estes apicultores e consequentemente milhares de familia de baixa renda vai desistir da apicultura, gerando uma cadeia de problemas, pois o Gov Lula incentiva a agricultura familiar que compra caixas de abelhas para a produção de mel, daí quando o cara ta produzindo, proibe ele de tirar o mel em casas de meis em condições boas e inúmeras delas excelentes, exigindo que eles centrifugam o mel em algo que é somente para cumprir um papel... vai gerar falta de pagamento dentro do setor bancário... Não concordo.... e europeus e americanos tb nao concordam, empresas que conhecem a qualidade mundial de mel nao entedem tamanha exigencia.

 
At 7:52 PM, Anonymous Pedro Constam said...

Sou apicultor e co-proprietário de uma Casa de Mel comunitária com SIF-ER, que para se adequar ao novo RIISPOA e poder continuar fracionando o Mel, terá que fazer um investimento de cerca de R$ 100.000,00.
Mesmo assim sou a favor do novo RIISPOA e a exigibilidade do SIF-ER para todo Brasil, uma vez que hoje alguns Entrepostos legalizam porcaria comprada no Norte/Nordeste, sem qualquer critério. Isto é o que mais desestimula os apicultores a credenciarem e inevestirem em suas associações, cooperativas e unidades de extração. Muitos destes investimentos são conseguidos a fundo perdido, mas o fato de entrepostos continuarem a comprar Mel nas roças, desestimula a adesão dos apicultores aos projetos coletivos!

Concordo que há fiscais a menos, o que dificulta todo processo, e tudo indica que mesmo a lei ficando mais severa, os espertinhos continuarão a burlar a lei!

 
At 8:32 AM, Blogger John said...

Prezado Pedro,
Obrigado por postar o comentário.

 

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