Uma criatura complexa está prestes a nascer. O nome do bicho é RIISPOA e significa "Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal". Idealizado pela burocracia do Ministério da Agricultura como instrumento para a garantia da qualidade e seguranca alimentar dos produtos de origem animal (mel, laticínios, carnes, peixes, etc) produzidos no Brasil, o dito cujo do RIISPOA, em sua revisão ora em trânsito pela Casa Civil, inclui uma ameaça grave a um setor que emprega milhares de pessoas no País todo e que exportou em 2009 um montante equivalente a 66 milhões de dólares. Trata-se do setor apícola que engloba desde os apicultores (em geral pequenos produtores espalhados por todos os Estados), cooperativas, entrepostos, exportadores, atacadistas e agentes de comércio (entre os quais me incluo).
Para entender melhor o problema, precisamos voltar ao ano de 2003. Nesse ano a FVO - Food and Veterinary Office (órgão equivalente ao MAPA na União Européia) enviou uma delegação de inspetores ao Brasil, a fim de averiguar de que tipos de controles o Governo Brasileiro dispunha para garantir que os produtos de origem animal produzidos no País (e eventualmente exportados) estavam isentos de contaminantes (resíduos indesejáveis tais como antibióticos e agrotóxicos por exemplo). Dessa inspeção resultou um ofício que alertava as autoridades brasileiras sobre a desconformidade do sistema brasileiro em relação às exigências sanitárias européias, mormente no que se referia ao controle de resíduos. Nesse mesmo ofício havia uma lista de medidas e práticas que o Governo deveria observar para garantir a continuidade do acesso dos produtos de origem animal (entre eles o mel de abelhas) ao mercado europeu. Por razões que até hoje desconheço, nossos burocratas e autoridades pouca atenção deram ao tal ofício e, no setor apícola, esse problema jamais foi discutido ou considerado. Os europeus são metódicos e como não confiam em boas intenções, enviaram uma nova comitiva de inspetores em 2005 que obviamente encontrou o setor apícola na mesma condição de 2003, ou seja, sem qualquer monitoramento estruturado para presença dos resíduos indesejados nos produtos da cadeia. Pouco tempo depois, em Março de 2006, a União Européia baniu todos os produtos apícolas brasileiros de seu mercado. Ou seja, estávamos, a partir daquele momento, impedidos de vender mel ou qualquer produto apícola na União Européia.
O mais interessante dessa história é que o Brasil é, por motivos biológicos e geográficos, um dos poucos países do mundo quase que totalmente livres de riscos de contaminação por resíduos. As abelhas brazucas são, por um acidente, híbridas, africanizadas. Essa mistura resultou numa maior resistência das colméias à doenças e por isso os apicultores brasileiros não fazem uso de antibióticos e fungicidas. Alguns apricultores nem sabem que existe remédio para abelhas. Ao mesmo tempo, se qualquer um de nós visitasse um apicultor argentino, uruguaio, americano, turco ou ucraniano, um dos orgulhos deles seria mostrar uma geladeira cheia de medicamentos, sinal de que eles prezam a saúde de suas colônias de abelhas. E se um acidente histórico ajudou o Brasil a ficar livre desses remédios, Deus também deu uma mãozinha e nos agraciou com um imenso território com plantas de enorme potencial apícola. E mais : muitas das regiões apícolas são bem afastadas de qualquer centro urbano ou de zonas de agricultura intensiva. Assim, prova de que Deus é mesmo brasileiro, boa parte do mel brasileiro é NATURALMENTE ORGÂNICO !!
Mesmo assim, fomos banidos do mercado europeu como contei acima. O embargo ao mel brasileiro funcionou como um despertador para os burocratas. Imediatamente grupos de trabalho foram formados e ações foram lançadas para a implementação do hoje famoso "Plano Nacional de Controle de Resíduos". Tudo foi feito com enorme esforço e colaboração do setor privado, que durante os dois anos de embargo acumulou prejuízos comerciais significativos.
Como sempre depois da tempestade vem a bonança, em Março de 2008 o embargo caiu. Estávamos de volta de onde nunca devíamos ter saído. Não fiquei surpreso ao saber que alguns burocratas até ficaram orgulhosos por isso. Afinal, quanta competência !
Uma das condições que tivemos que observar para ter nosso produto aprovado para o mercado europeu foi a seguinte : todo entreposto ou unidade processadora de mel que consolida vários lotes para a formação de um lote a ser exportado para a União Européia tem que operar em consonância com alguns princípios sanitários determinados que incluem os conceitos de rastreabilidade, higiene e segurança alimentar. Assim, as empresas exportadoras de mel (que na maioria são entrepostos) compram a matéria prima de centenas de apicultores e cooperativas e a beneficiam utilizando sistemas de qualidade que respeitam esses princípios.
O embargo de 2006 deitou raízes na burocracia do Mapa. A preocupação com a qualidade do mel que produzimos alcançou, nesse âmbito, proporções que nem o mais meticuloso dos alemães conseguiria imaginar. Desde de 2008, além dos entrepostos terem que estar em conformidade com as regras sanitárias acima descritas, o MAPA resolveu que para todos os embarques destinados à União Européia, o mel deveria provir de casas de mel inspecionadas e aprovadas pelo SIF - Serviço de Inspeção Federal. Casas de mel são pequenos estabelecimentos (muitas vezes apenas um galpão coberto) aonde os apicultores fazem a extração primária do mel, retirando o mesmo dos favos através de centrífugas e envasando-o em tambores que depois serão vendidos aos entrepostos. O problema é que o número de casas de mel existentes no Brasil, que atendem a milhares e milhares de pequenos produtores, é inversamente proporcional ao número de fiscais do SIF disponíveis para visitá-las, inspecioná-las e aprová-las (ou não). Eu fiz uma conta que a grosso modo resultou que o Governo levaria mais de cem anos para inspecionar somente as principais casas de mel existentes no Brasil haja vista o número de fiscais disponíveis para esse segmento. Disso resultou o que chamamos no mercado de "auto-embargo". Ou seja, indo muito além do que nossos clientes pediram (os europeus), decidimos exigir coisas que eles nem sonham pois sabem que é inviável. Para deixar uma casa de mel de acordo com o padrão SIF é necessário um investimento que na maioria das vezes não é factível para o pequeno produtor, mesmo que em regime associativo. Por causa desse auto-embargo, mais uma vez o setor privado está amargando prejuízos pois deixamos de vender para a Europa (que paga preços maiores) para ter que vender para os EUA, o que tem representado perdas de até 20% na rentabilidade das operações. Deixamos de vender para a Europa porque há pouquíssimas casas de mel que já tiveram a sorte de receber a visita dos fiscais do SIF e serem aprovadas.
Como se isso não bastasse, o MAPA em seu trabalho de revisão do RIISPOA, recusou os argumentos do setor privado quanto à desnecessidade da exigência de enquadramento das casas de méis no padrão SIF e foi além : segundo a nova versão deste regulamento, esta exigência passará a valer para todos os países para os quais o Brasil exporta. A criatividade governamental é realmente estupenda. Estamos prestes a ampliar o auto-embargo para todos os países. Eu gostaria de saber o que o MAPA sugere que façamos com a nossa produção de mel... Quem sabe o Governo poderia comprar toda a produção e criar uma Bolsa Colméia ou um programa novo chamado Vida Doce ou coisa parecida.
Se o novo RIISPOA for ratificado pelo Presidente Lula, estaremos perto do fim do mercado formal de mel no Brasil. Ou será que o Governo vai disponibilizar 10 mil fiscais para trabalhar em todo o Brasil na qualificação das casas de mel ? ISSO É UM ABSURDO.
O MAPA está sendo mais realista que o rei. O problema é que o rei ainda não sabe.